quinta-feira, 7 de março de 2019

Lição De Carnaval


Lição De Carnaval

Já de cara tenho que dizer: venho aqui como homem negro, pobre, descendente de escravizados e ex-favelados do morro da Mangueira. Dito isso, ressalto que a minha ligação com o samba, com o carnaval e com a festa, vai além de querer a degradação do país, como infelizmente creem o presidente e o prefeito. Meu compromisso com o carnaval é histórico, para celebrar a resistência dos meus ancestrais, que não tinham o direito de elevar a sua cultura, celebrar a sua fé e/ou mostrarem o seu intelecto.
Em uma sociedade como a nossa, que é racista, machista, xenófoba, sexista, misógina e que faz questão de afastar da sua história tudo o que não seja feito por homens, brancos, cristãos, ricos, de boas famílias, de preferência do sul e do sudeste, você defender uma manifestação popular que tem origem nos rincões do subúrbio, nos terreiros de umbanda e candomblé é um sinal de resistência e representatividade.
E aí que está a grande cara desse carnaval 2019: Representatividade. Quando a bateria da Mangueira parava e o povo na Sapucaí gritava: “Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e Malês”, nesse grito estava sintetizado todo o grito de quase 100 anos de história de resistência, desde os ranchos carnavalescos, passando pelos blocos, até chegarmos as atuais escolas de samba.
Como em uma inspiração quase que divina bem definiu Jorge Aragão: “Respeite quem pode chegar onde a gente chegou”. E é bem por aí, o samba pede respeito. Aliás, pede não exige o seu merecido respeito, pois traz sobre seus ombros a responsabilidade de carregar a luta dos ancestrais, dos negros escravizados, dos índios exterminados, dos inconfidentes, de todo e qualquer brasileiro que se levantou contra as mazelas e injustiças perpetradas em nosso país.
Em um país que o presidente prefere fazer pouco caso da história, onde se desvaloriza o que é do negro, do pobre, do índio, da mulher, do nordestino e de tantos outros marginalizados, ter uma Estação Primeira de Mangueira exaltando os feitos de “mulheres, tamoios e mulatos”, pedindo para ver o país que não está no retrato é uma forma de querer uma reparação, de mostrar que essas pessoas também fizeram a história desse país.
A vitória do carnaval da Mangueira é um sopro de esperança por um Brasil melhor em meio a tantas notícias ruins para a diversidade e a representatividade por essas terras. A partir do momento em que indignados levaram ao poder alguém que é totalmente afeito a discriminar, humilhar, denegrir e desfazer de pessoas marginalizadas, ouvir o samba da Mangueira deve embrulhar o estômago dos seus apoiadores.
Afinal, ver os heróis dos barracões e perceber que a história desse país passa, exatamente, por Lecis e Jamelões, causa espanto a essas pessoas, que julgam que quem matou índios merece estátua, quem torturou pessoas, merece ser exaltado em palanque no plenário e quem escravizou negros, merece ser glorificado quase que como santo.
Os Brasis que foram contados nesse carnaval pela Verde e Rosa são os Brasis de verdade, são os que mostram o seu povo sofrido e que embora, mesmo humilhado e esculachado na favela, ainda tem força para se levantar e denunciar os crimes contra eles praticados. Gritam a plenos pulmões a história dos seus antepassados, trazendo luz a momentos históricos que o povo brasileiro sempre fez questão de esconder.
O negro não foi escravizado por ser mais servil que o índio, o índio não foi enganado e cedeu sua terra ao homem branco, ambos foram forçados, foram caçados, foram torturados, estuprados e exterminados. Enquanto ao negro restou a favela, ao índio restaram as reservas naturais e mesmo assim, os governantes acham que nem isso eles merecem, pois querem rever as fronteiras das reservas e dar tiro de fuzil nas favelas.
A verdade é que o enredo da Mangueira não tem que ser exaltado só por mulheres, negros, índios, mestiços, nordestinos, estrangeiros e que tais, essa vitória deveria de ser de todo o povo brasileiro, por fazer uma reconciliação com a sua História, por apresentar os heróis anônimos, por trazer luz sobre as trevas, por mostrar que certos pontos da nossa história não são tão assim quanto nos fizeram acreditar.
Para finalizar, lembro o que disse o político e filósofo irlandês Edmund Burke: “O povo que não conhece a sua história, está condenado a repeti-la”. Sendo assim, exaltemos sim a História que a história não conta, o avesso do mesmo lugar, pois é na luta que a gente se encontra. Afinal, atrás de todo herói emoldurado em nosso país há sangue retinto pisado. Viva a Mangueira! Viva o Samba! Viva o povo negro! Viva o povo indígena! Viva a mulher! Viva o nordestino! Viva o povo brasileiro!

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