Lição
De Carnaval
Já de cara tenho que dizer: venho aqui como homem
negro, pobre, descendente de escravizados e ex-favelados do morro da Mangueira.
Dito isso, ressalto que a minha ligação com o samba, com o carnaval e com a
festa, vai além de querer a degradação do país, como infelizmente creem o
presidente e o prefeito. Meu compromisso com o carnaval é histórico, para
celebrar a resistência dos meus ancestrais, que não tinham o direito de elevar
a sua cultura, celebrar a sua fé e/ou mostrarem o seu intelecto.
Em uma sociedade como a nossa, que é racista,
machista, xenófoba, sexista, misógina e que faz questão de afastar da sua
história tudo o que não seja feito por homens, brancos, cristãos, ricos, de
boas famílias, de preferência do sul e do sudeste, você defender uma
manifestação popular que tem origem nos rincões do subúrbio, nos terreiros de
umbanda e candomblé é um sinal de resistência e representatividade.
E aí que está a grande cara desse carnaval 2019:
Representatividade. Quando a bateria da Mangueira parava e o povo na Sapucaí
gritava: “Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e Malês”,
nesse grito estava sintetizado todo o grito de quase 100 anos de história de
resistência, desde os ranchos carnavalescos, passando pelos blocos, até
chegarmos as atuais escolas de samba.
Como em uma inspiração quase que divina bem definiu
Jorge Aragão: “Respeite quem pode chegar onde a gente chegou”. E é bem por aí,
o samba pede respeito. Aliás, pede não exige o seu merecido respeito, pois traz
sobre seus ombros a responsabilidade de carregar a luta dos ancestrais, dos
negros escravizados, dos índios exterminados, dos inconfidentes, de todo e
qualquer brasileiro que se levantou contra as mazelas e injustiças perpetradas
em nosso país.
Em um país que o presidente prefere fazer pouco caso
da história, onde se desvaloriza o que é do negro, do pobre, do índio, da
mulher, do nordestino e de tantos outros marginalizados, ter uma Estação
Primeira de Mangueira exaltando os feitos de “mulheres, tamoios e mulatos”,
pedindo para ver o país que não está no retrato é uma forma de querer uma
reparação, de mostrar que essas pessoas também fizeram a história desse país.
A vitória do carnaval da Mangueira é um sopro de
esperança por um Brasil melhor em meio a tantas notícias ruins para a
diversidade e a representatividade por essas terras. A partir do momento em que
indignados levaram ao poder alguém que é totalmente afeito a discriminar,
humilhar, denegrir e desfazer de pessoas marginalizadas, ouvir o samba da
Mangueira deve embrulhar o estômago dos seus apoiadores.
Afinal, ver os heróis dos barracões e perceber que a
história desse país passa, exatamente, por Lecis e Jamelões, causa espanto a
essas pessoas, que julgam que quem matou índios merece estátua, quem torturou
pessoas, merece ser exaltado em palanque no plenário e quem escravizou negros,
merece ser glorificado quase que como santo.
Os Brasis que foram contados nesse carnaval pela Verde
e Rosa são os Brasis de verdade, são os que mostram o seu povo sofrido e que
embora, mesmo humilhado e esculachado na favela, ainda tem força para se
levantar e denunciar os crimes contra eles praticados. Gritam a plenos pulmões
a história dos seus antepassados, trazendo luz a momentos históricos que o povo
brasileiro sempre fez questão de esconder.
O negro não foi escravizado por ser mais servil que o
índio, o índio não foi enganado e cedeu sua terra ao homem branco, ambos foram
forçados, foram caçados, foram torturados, estuprados e exterminados. Enquanto
ao negro restou a favela, ao índio restaram as reservas naturais e mesmo assim,
os governantes acham que nem isso eles merecem, pois querem rever as fronteiras
das reservas e dar tiro de fuzil nas favelas.
A verdade é que o enredo da Mangueira não tem que ser
exaltado só por mulheres, negros, índios, mestiços, nordestinos, estrangeiros e
que tais, essa vitória deveria de ser de todo o povo brasileiro, por fazer uma
reconciliação com a sua História, por apresentar os heróis anônimos, por trazer
luz sobre as trevas, por mostrar que certos pontos da nossa história não são
tão assim quanto nos fizeram acreditar.
Para finalizar, lembro o que disse o político e
filósofo irlandês Edmund Burke: “O povo que não conhece a sua história, está
condenado a repeti-la”. Sendo assim, exaltemos sim a História que a história
não conta, o avesso do mesmo lugar, pois é na luta que a gente se encontra.
Afinal, atrás de todo herói emoldurado em nosso país há sangue retinto pisado.
Viva a Mangueira! Viva o Samba! Viva o povo negro! Viva o povo indígena! Viva a
mulher! Viva o nordestino! Viva o povo brasileiro!